domingo, agosto 07, 2005

Daileon e a crítica à repressão sexual

Muita gente já se desidratou de tanto chorar de rir com a original e hilariante versão “dublada” da Cia. Do Salame para Daileon. Mas infelizmente poucos conseguiram notar a sutil mensagem que foi subscrita na versão aportuguesada da canção.
Com a repressão ditatorial de suas épocas, compositores como Chico Buarque criptografaram mensagens ao público em suas obras, acreditando na capacidade intelectual dos ouvintes e principalmente na dos censuradores. O maior exemplo é o “Cálice”, interpretado duplamente por “cale-se”, que obviamente não foi barrado pela política aterrorizada pela possibilidade de lidar com uma população inteligente. Ignorância é força, como bem sabem.
Anos se passaram e não há mais censura. Não explicitamente, claro. Liberdade de expressão existe junto à liberdade de opressão mediática, graças à capitalização artística por gravadoras, redes de telecomunicações, imprensa interesseira, etc. Por isso, para fugir dos olhos que não enxergam o potencial de cada expressão despretensiosa, alguns artistas utilizaram-se de meios pouco convencionais — as animações em flash — e utilizaram músicas já há muito conhecidas para gritarem de uma forma abafada, lançando seu pólen ao vento da web; com tal capacidade de proliferação/divulgação, é a melhor metáfora que posso encontrar para simbolizar a Internet e suas loucas invenções. Pois bem, mais uma vez alguns lapidadores poéticos conseguiram a façanha de enganar o sistema dominante e conseguiram seu espaço na mente de muitos.
Recentemente o Brasil foi tomado por uma onda de dublagens de antigos seriados japoneses, como Jiban, Changeman, Cyber Cops, etc. O precursor da febre foi o flash do Daileon, Gigante Guerreiro de Jaspion. Poucos, porém, enxergaram a verdadeira mensagem que a novidade transmitia pelos seus hilários cânticos. A partir de agora mostrarei o que cada verso traz subliminarmente, numa obra prima que com toda certeza terá seu valor reconhecido apenas na posteridade.
Em resumo, o flash do Daileon protesta contra a repressão sexual de nossa sociedade construída no temor ao pecado. Faz uma íntima relação entre o poder e a hipocrisia que muitos têm com relação ao sexo. Pode-se perceber revolta contra a imposição do conceito de “mantimento da imagem” e negação do prazer. E a seguir destrincho verso a verso a primordial obra da web-músico-literatura contemporânea.

Para quem não se lembra, a versão na íntegra era:

O cara tossiu
O cara tossiu
O canalha do alto, que útil

Courinho há que sei
Mão no manual, pisei
Dou brioco ET
Já cu no caco da menina
Cio vacina e vou
Enfim, cu no pau há

E o metão, qualquer um,
Vou e monto o meu
O tocou, pinto urinou
Capa e óia o cu

Daileon! Daileon!
Enjoa, você que sentou a tocar uma
Daileon!

O cara tossiu
O cara tossiu
O rei igual ao dinheiro de passar

Ranga-me no ato,sei
Cara só no álcool, sei
Que lindo que é ter
Seis minutin’s cada orgia
Senta e abre a bunda
C’os micos, cu azul

Ah então, viu que bom,
Bunda eu lhe kimbei
Assinou, de roubo ou
Mamo-lhe no cu

Dai-lhe-ô! Dai-lhe-ô!
Joe, ah você que sentou a tocar uma
Dai-lhe-ô!

Aposto que não é tão engraçado quanto a ler tudo isso junto à animação. (para relembrar do flash, clique aqui). Mas vamos lá, à análise.
Logo de início temos que ter um profundo conhecimento das teorias psicanalíticas que dizem que nosso inconsciente projeta doenças em partes do corpo relacionados a determinadas tarefas do cotidiano. Pela expressão corporal nossos desejos ocultos mostram ao consciente algo relacionado ao que precisa ser saciado. Isso significa que quando a garganta inflama, ou “o cara tosse”, é porque o cara precisa botar pra fora algo que está incomodando seu eu; ele precisa se comunicar, precisa desembuchar, desabafar, já que a voz é o principal meio de comunicação entre pessoas numa conversa. Por isso ele inicia assim sua revolta à sociedade: o cara tossiu por algum motivo. E qual motivo? O canalha do alto.
O canalha do alto é o ser que se posiciona acima dos cidadãos comuns. Pode ser o papa, o presidente da empresa, ou pode até ser uma zombaria a deus, se ele quiser dizer “não acredito mais no que os canalhas disseram!”. Ainda desabafa da inutilidade que as convenções vindas da ordem de cima — do chefe, ou mesmo da religião. Com que ironia ele diz que útil! Como é início da música, temos que lê-la até o fim para compreender de qual versão trata: sociedade, corporativismo ou religião? Pode ser uma, duas, todas, ou nenhuma delas. Mas a inter-relação de todas essas possibilidades comprovaria a genialidade da dublagem criada. Mas, continuemos.
“Courinho há que sei. Mão no manual, pisei.” Courinho representa aqui ou a fricção genital provocada pelo coito (“dar no couro”), às relações sadomasoquistas ou homossexuais (roupas de couro). Aí, ele diz que mão no manual pisou. Ou seja, ele segurou com firmeza um manual imaginário (regras ditadas, leis impostas) e pisou, repudiou. É uma atitude que representa a superação da prisão criada pela sociedade. Graças ao ato corajoso ele torna-se um estranho, e por isso ele associa-se a um não-humano, um ser do além, um ET. Dar brioco significa uma versão popular de “dar-me o direito do brio"; brio significa sentir-se honrado por si mesmo, corajoso, altivo, com amor próprio, etc. Podem procurar no dicionário. São todas qualidades de quem toma uma atitude contra as convenções adotadas. A variação “dou brioco” é uma junção “brio + com”, mas que na língua falada fica “co”; brioco. Com a sensação de ser um estranho (ET) ele tornou-se brioso. É claro que o autor não escreveria assim, "brioso por ser ET", para não dar na cara que ali havia mensagem subliminar. Então podemos dizer que ele diz “dou brioco ET” pelo fato de se orgulhar por pisar com firmeza no manual.
"Já cu no caco da menina"; significa “entretanto, nos já cansados tabus (cu) femininos”... ele inverte a ordem (recurso poético), mas deixa a mensagem: com os tabus que as mulheres ainda teimam em manter (sexo anal! o cara é bem explícito aqui), ele responde da seguinte maneira: Cio, vacina e vou. Ou seja, ele responde com acentuado desejo sexual (cio) para convencer a garota de que ela pode e deve se entregar aos prazeres carnais; o tabu é velho, e por isso tá um “caco”. Caco da menina. Afinal, diante de um macho insaciável, é bem capaz que a garota ceda ao final da noite. Ela se sentirá desejada e pensará que talvez ela deva quebrar o tabu e deixar o revolucionário penetrar por trás da vergonha. A mulher geralmente se sente feliz em ser desejada por alguém que ela gosta; é natural que ela seja mais generosa também. Por isso, essa condição momentânea de felicidade eterna vai sedar seu medo, ou seja, vai vaciná-la contra o vírus do pré-conceito, e vai. Cio, vacina, e vou. Para demonstrar a vitória da liberdade sexual perante o velho tabu, ele fecha o verso como num haikai: enfim (até que enfim), cu no pau há (houve o coito anal). E, vejam, não é “pau há no cu”, que afirmaria o vetor “homem-em-driação-à-mulher”, e sim “cu no pau há”, “mulher-ao-homem”. É, meus amigos, parece que o cara foi tão convincente que no final ele nem precisou pedir de novo: a menina que se ofereceu prontamente para satisfazer-lhe as fantasias. Cu no pau há.
Parece, portanto, que o “courinho” não era nenhuma das minhas suposições citadas; é o anel de couro mesmo, em seu diminuto tamanho. Ele pisou no manual das leis da repressão sexual porque ele sabia que, no fundo, no fundo. trocadilhamente falando, havia um courinho louco para romper com a sociedade. Motivos suficientes para o homem sentir-se altivo, brioso com a sensação de estranheza no ninho. Tudo se encaixa!
Ele cntinua referindo-se à liberdade sexual. Insinua uma orgia dizendo que monta em qualquer um. Quem é “metedor” (obviamente o autor precisou aproximar-se do linguajar cotidiano, que já diz “metão”, significando aqueles que com freqüência terminam a noite ao lado de uma mulher). E diz que ele está facinho: toque-o, e ele gozará com tanta intensidade que parecerá urinar. E o metão em qualquer um deve montar o dele. E como ele é um poeta que se preocupa com sua segurança, ele enaltece o uso da camisinha para praticar seus relações promíscuas: “capa, e óia (olhe) o cu.” Ou seja, basta encapuzar o garotão, que, pronto, ele topa qualquer traseiro.
Os versos são “Daileon”, mas têm um outro significado, assim como no “cálice/cale-se” de Chico Buarque. “Daileon” pode ser muito bem lido como “dá-lhe-o”; dê, a ele, seu objeto direto; ou seja, não negue-lhe o objeto de desejo. Ou seja, é um grito contra os cus doces que teimam em renegar seus prazeres. Depois dos amassos, pra quê a garota vai dizer não? Para despedir do cara, achar que fazendo-se de difícil será valorizada? E ainda, para saciar-lhe a vontade do gozo, vai ser egoísta a tal ponto de tocar uma siririca? Isso enjoa! Vai sentar sozinha a tocar uma, e ele, o frustrado da noite, idem? Dá-lhe-o!
Portanto, refere-se à superação das barreiras que nós, seres humanos, impomos a nós mesmos. Claro, as idéias de repressão sexual foram difundidas com objetivo de aterrorizar os crentes e apontar-lhes o inferno como pagamento dos pecados; isso foi uma estratégia de domínio da Igreja Católica na Europa, que tornou-se então conservadora e inquisidora. É por isso que o Brasil, que tem uma mistura no sangue de índios e africanos, muitas vezes entra em conflito hipócrita: as formas do(a) brasileiro(a) são uma ode à celebração sexual, porém a criação colonizadora e catequizadora fez-nos crer que é tudo isso pecado. Ou que devemos parecer pessoas que não nos entregamos aos instintos animais. Como se deus tivesse criado-nos de argila, e não dos macacos. O autor da dublagem diz isso muito bem nessas entrelinhas. São os canalhas do poder (do alto) que ditaram a inutilidade da vergonha. Amigos, pisai nos manuais!
A segunda parte é ainda mais explícita. Mas, primeiro, ele faz uma obra digna de palimpsesto (que precisa escavar, ir ao fundo, para entender). Vamos lá: o rei é igual ao dinheiro de passar. O dinheiro de passar passa. Logo, o rei passa. Tudo isso representa a efemeridade do poder: uns vêm, outros vão, mas é como dinheiro na carteira: você faz trocas, você comercializa, você não fica com a mesma nota. Tudo isso é como uva: passa. Se associarmos ao contexto da poesia, ou seja, à liberação sexual, perceberemos a relação que há entre as analogias. O rei nem sempre tinha total poder; bem leigamente falando, ele era vinculado ao papado católico. E, notem, os reis morriam e a religião ficava. Mas comparando de lá pra cá, a própria religião moldou-se àlgumas necessidades humanas. A ciência já é bem mais aceita para algumas verdades, e a religião, para não perder fiéis, teve que se adaptar. Vejam que ironia: até a Igreja está passando. Se os dogmas mudam, então ela também é dinheiro de passar. Leitores, o autor está indicando: um dia, a liberdade sexual terá transpassado todos os dogmas religiosos cristãos.
Ranga-me no ato. Rangar é sinônimo de “comer”, e comer é “cometer ato sexual voraz”. Percebam que agora é uma mulher quem vos fala (ou um gay, vai saber): ranga-me no ato = transe comigo agora. É isso que a mulher dirá naturalmente no futuro; a tradução do Daileon é uma obra de arte nostradâmica: um dia, toda a hipocrisia da negação hedonista cairá, passará, e as mulheres em vez de queimarem sutiãs queimarão roscas e bíblias. E o álcool será reconhecido por suas propriedades libidinosas (cara só no álcool). Na verdade, no futuro liberal não haverá mais a necessidade das drogas, como o álcool, pois o erotismo existirá no cotidiano e não precisaremos “agendar” momentos de alegria nem combinar locais: fins de semana, baladas, enfim, todo local, a qualquer hora, será um templo do prazer. E vejam como a autora define seu ideal de beleza: "que lindo que é ter seis minutos para cada orgia”. Uma orgia tem um formato conhecido hoje em dia, e sabemos que não dura seis minutinhos. Para tornar-se possível, somente com a liberação dos desejos no dia-a-dia: você vê um cara no metrô e diz no ato que o deseja (ranga-me!); você conhece a sua sogra enxuta e propõe uma celebração familiar à beleza genética encontrada. E o final da estrofe ainda diz: “àqueles que ainda se sentirem envergonhados de sua própria timidez — sentem-se pagando mico, e ficam mais que vermelhos, ficam mais que roxos, ficam é da cor azul! — sentem-se e abram a bunda.” Ou seja, se o cara for home, “vai tomar no cu”. Se for mulher, “relaxa e goza.” Essa é pros micos, cu azul.
Ela tem certeza que o mundo caminhará mais feliz quando cada um fazer o que bem entender (desde que seja recíproco à outra pessoa, claro). Portanto ela diz: “viu que bom? Bunda eu lhe kimbei”. Mais um verbo que precisamos estudar com afinco: creio que seja uma versão de fala rápida das palavras “que + imbar”. “Imba” é o buraco cavado na terra para jogar bolinha de gude (procure num bom dicionário). Ou seja, o cara deve ter entrado com bola e tudo na bunda “kimbada” da garota! Ela deu e assina em baixo: “Assinou!” — Ela ainda defende a bissexualidade (que liberal, não?): faz apologia tanto ao sexo “de roubo” quanto ao “mamado”. O mamado significa o ato de beijar os orifícios, e tanto um homem quanto uma mulher pode bem fazê-lo. Já o “de roubo”, existem dois tipos de roubo: aquele que ameaça com um objeto (o cara está “armado”, ou seja, é o homem em estado de ereção, ou é outra pesoa com vibrador) ou aquele que é salafrário ou furta: ele “passa a mão”. Isso é pegação total!
E, por fim, o refrão do incentivo à liberdade. Dai-lhe-ô. Até o cara que escreveu aquele livro na bíblia (Jó) entrou no meio (Joe).
É, meus amigos. Aposto que ninguém tinha reparado a profundidade destes versos. E que venham a nova safra de poetas tão bons quanto este. Afinal, se até os reis passam, se até os canalhas do alto passam, então devemos promover o fluxo da humanidade para nossa própria evolução. É o que eu aprendi assistindo Daileon!

PS: o autor desse blog sabe que a "não liberação" é uma defesa que o ser humano cria para não se subeter a qualquer aproveitador. Mas, veja que iso nao seria necessário se a sociedade fosse cosntruída numa base de amor e liberdade. Comente deixando seu e-mail se quiser discutir ou se sentiu ofendido.
PS 2: Isso tudo é zoeira total. Respeito a religião dos outros, desde que respeitam a minha, ou seja, que não me matem nem que persigam para colocar na fogueira.

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